A semana política em Portugal fica marcada pelas denúncias de Isabel Moreira sobre o comportamento dos deputados do Chega na Assembleia da República: a deputada socialista acusa alguns elementos do partido de André Ventura de “insultos racistas e misóginos”. “Há um quotidiano infernal, ingerível, de se ficar com os ouvidos verdadeiramente afetados, e uma ofensa e uma injúria permanente”, refere.
Isabel Moreira indica mesmo que terá sido dito um “boa noite”, ao meio-dia, dirigido a uma deputada negra, entre outros. “Quando estamos a passar nos corredores da Assembleia da República ou nos corredores do hemiciclo para falar, eu já ouvi coisas como vaca, mugidos ou nomes que normalmente se chamam a deputadas que são assumidamente lésbicas”, acusa.
Romualda Fernandes, antiga deputada socialista, foi a visada e confirmou as ofensas. “Sou capaz de identificar o deputado que me dirigiu essas ofensas. Cruzando-me com ele no corredor para a Assembleia, quando ia para uma reunião das comissões, para a sala das comissões, quando abro a porta, em pleno dia, olha para mim e diz-me ‘boa noite’. Tomei aquilo como um ofensa e eu percebi do que é que se estava a tratar”, explica a ex-deputada. “Riu-se, pelo tom, pela forma jocosa como disse, e prosseguiu rindo-se.”
Também Inês de Sousa Real, porta-voz do PAN, garante que “infelizmente, sim. Sabemos que estas situações, este bullying persistente por parte do Chega, não é novidade”. “A origem é sempre do mesmo grupo parlamentar. Ventura tem de deixar de se lamuriar”, aponta, referindo que o Chega “escusa de ameaçar” com procedimentos judiciais e considerando que os “deputados e deputadas do Chega vão ter de deixar de se esconder atrás das saias” de André Ventura e assumirem a responsabilidade “por aquilo que dizem”.
Mas foi sempre assim na Assembleia da República? Insultos racistas, não, mas no que diz respeito a linguagem de baixo nível, sim. E até bastante, garante José Filipe Pinto, professor catedrático de Relações Internacionais pela Universidade Lusófona e autor de mais de uma dúzia de obras, que falou à ‘Executive Digest’ sobre uma realidade desconhecida por muitos portugueses.
“As acusações passam uma imagem muito negativa, mas esta não é uma novidade”, refere o politólogo. “Em investigações anteriores, tive ocasião de analisar, por exemplo, os diários das sessões da Primeira República [entre 1910 e 1926]. E, nesse tempo, o nível do debate foi muito baixo, era habitual a utilização de palavras que não são minimamente aceitáveis num Parlamento.”
Mas os insultos não decorriam só há um século, garante o investigador. “Na fase que se seguiu ao 25 de Abril, já analisei os diários e aí houve, com muita frequência, muitos ataques só explicáveis pela conjuntura que se vivia.”
“Se na Primeira República podíamos pôr em causa a falta de preparação de alguns deputados, o pós-25 de Abril ficou definido pelo elemento revolucionário. Há vários casos de ataques ‘ad hominem’, em que percebemos que os partidos de esquerda – PCP e UDP – , mas principalmente um deputado da UDP, que usava uma linguagem que não era minimamente aceitável no Parlamento, mas que explicavam pela conjuntura revolucionária vivida pelo país”, lembra José Filipe Pinto. “Os destinatários? Tudo o que era à direita do PS, portanto PSD (na altura o PPD), mas essencialmente o CDS, para uma tentativa de colagem ao antigo regime. As suas figuras eram sempre alvo de tratamento muito pejorativo. Era difícil separar onde terminava o argumento político para passarmos para argumentação do foro pessoal.”
Segundo o académico, “era prática comum”. “Sempre que há um golpe de Estado, ou revolução, numa fase em que a poeira revolucionária ainda anda no ar, é normalíssimo este tipo de atitudes. Mas não é normal que isso aconteça 50 anos depois da revolução”, frisa.
“Temos uma Constituição aprovada há quase meio século. Se até à revisão constitucional de 1982, ainda há um enquadramento revolucionário, a partir daí deixa de fazer qualquer sentido de haver uma explicação lógica para a linguagem e para a situação que estamos a viver”, refere. E o que significa ou que imagem deixa? “Que na casa da democracia há quem não saiba cultivar a democracia: ou porque verdadeiramente não tem cultura democrática ou não sabe usar os direitos que a Constituição lhe reconhece.”
“Há dois direitos fundamentais na Constituição: a liberdade de expressão, no artigo 37, que define claramente esse direito. Mas depois há um outro artigo, o 26, que vai definir o direito ao bom nome e reputação. Os dois artigos não são incompatíveis, bem pelo contrário, são complementares. Revelam que um deputado tem de saber a lei suprema do país e tem de saber que há limites para que não confunda a liberdade de expressão com libertinagem, que é o uso da liberdade sem responsabilidade.”
Então, como se explica o atual clima violento no Parlamento?
“Temos neste momento uma Assembleia da República polarizada, com dois blocos claros: um que se identifica com a esquerda, com três componentes – a esquerda, a esquerda radical e a extrema-esquerda – e há um bloco de direita, com os mesmos componentes. Quando temos um Parlamento polarizado, voltamos àquilo que chamo de elemento revolucionário – começa a haver espaço para, em nome da luta ideológica, ataques ‘ad hominem’. E esses ataques são muito violentos. Porquê? Precisamente porque mais do que esgrimir argumentos propõe-se criticar comportamentos. E aí entramos no âmbito pessoal”, ilustra José Filipe Pinto.
“Esta polarização está a trazer à memória elementos que caracterizavam os períodos revolucionários. O que verdadeiramente significa que em Portugal, 50 anos depois do 25 de Abril, não se construiu uma cultura democrática e há muito dificuldade em usufruir dos direitos reconhecidos pela Constituição”, conclui.
Como reage o Parlamento a tais acusações? De mãos atadas, refere especialista
A única forma de ‘travar’ este clima seria gravar tais insultos, que poderia servir para uma queixa-crime por parte dos visados – esta seria a única forma de responsabilizar os deputados, explica o constitucionalista Jorge Pereira da Silva. Isto porque os deputados, como um humorista ou jornalista, tem um atuação dentro da liberdade de expressão mais ampla. “No humor é combinável com a liberdade de criação”, refere. O mesmo com os deputados. “A Constituição isenta os deputados de responsabilidade criminal, civil e disciplinar pelos seus votos e opiniões no mandato.”
É o que refere o Estatuto dos Deputados. No entanto, onde termina este ‘chapéu’ da liberdade de expressão e começa o crime? De acordo com o especialista, se houver deputados a insultar outros nos corredores, nas comissões ou mesmo em plenário, já se torna “uma questão criminal”. No entanto, nos regimentos da Assembleia da República, a sanção máxima prevista é uma advertência do Presidente da Assembleia da República ou certas sanções acessórias.
Mas aí são questões acessórias e da ordem de trabalhos ou de representação da Assembleia da República. Diferente é uma responsabilização crónica ou até uma responsabilização criminal – das razões que podem levar à perda do mandato de deputado, apenas duas dizem respeito à atividade parlamentar: a ausência de tomada de posse ou o exceder do número de faltas e a inscrição noutro partido que não aquele em que estava quando foi eleito.
Para outras sanções, tem de haver queixa dos visados para que se abra um processo criminal, que poderia levar, no limite, ao levantamento da imunidade parlamentar e, posteriormente, em caso de condenação, à perda de mandato.













